O evangelho de Marcos como livro de testemunhas: da testemunha ocular para as muitas testemunhas

by - junho 11, 2021

 O evangelho de Marcos como livro de testemunhas: da testemunha ocular para as muitas testemunhas.

Sidney Moraes Sanches


O artigo “O evangelho de Marcos como livro de testemunhas: da testemunha ocular para as muitas testemunhas” foi escrito pelo Doutor Sidney Moraes Sanches e publicado recentemente (2018) no periódico Perspectiva Teológica do Departamento de Teologia da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE (Belo Horizonte - MG). Sanches possui Doutorado e Pós-doutorado em Novo Testamento e presentemente atua como professor na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE.

O estudo de Sanches inicialmente ressalta o quão proveitosa é a análise do testemunho e das testemunhas que ajudaram a construir o Evangelho de Marcos. Nesse sentido, ele propõe entender o conceito e o papel da testemunha no Novo Testamento e no Evangelho marcano a partir da análise dos denotativos internos oferecidos na obra de Richard Bauckham (2011), que discute a questão de os Evangelhos serem baseados em relatos de testemunhas oculares.

No desenvolvimento dos textos de Richard Bauckham, Sanches nos faz entender que os Evangelhos evoluíram a partir do relação existente entre as tradições orais e as escritas, mediadas por testemunhas oculares, até transformar-se em textos escritos nas congregações pós-apostólicas. Por esse motivo, é de extrema importância construir textos [como este] sobre a vida de Jesus analisada através das evidências internas dos Evangelhos fornecidas por todos os tipos de testemunhas.

Com essa análise, Sanches utiliza a obra de Richard Bauckham como norteadora do seu estudo. Principalmente devido Bauckham se apoiar nos estudos historiográficos da Tradição oral e, também, nas investigações sobre a memória efetuada pela Psicologia, rejeitando os resultados estabelecidos pela Crítica das Formas (Formgeschichte), que despreza o relato das testemunhas oculares, e se sustenta nos textos já fixados.

Entendemos a grandeza de aprender o que é uma testemunha ocular, bem como a importância dos relatos de outras testemunhas. Para Bauckham (2011), a pessoa da testemunha ocular, é alguém que, além de participar, esteve o mais perto possível dos acontecimentos e cuja vivência o capacita a assimilar o significado do que ele observara. Nessa crítica, percebemos que a palavra testemunha nos concede significados distintos no Novo Testamento. Pode ser definida como aquele que desempenha o papel de autoridade, sendo designado por Jesus de Nazaré para dar o perdão pela fé em Jesus; e também como aquele que conduz a verdade emitindo o testemunho sendo avaliado e julgado, bem como, captando a verdade sobre Jesus. No entanto, Bauckham mantém o paradigma da tradição escrita fundada em uma tradição oral legitimada por uma testemunha ocular, calando uma quantidade enorme de testemunhas.

Sendo assim, Sanches atesta que, no período entre o ministério de Jesus e as primeiras transcrições do Evangelho de Marcos, indivíduos cristãos transmitiram frequentemente suas experiências vividas ao lado de Jesus nazareno. Esses testemunhos foram cruciais, pois migraram para dentro do Evangelho de Marcos, erguendo uma memória popular, que não era oficial, muito menos autorizada de Jesus.

Devemos destacar a minuciosa caracterização que o Doutor Sanches constrói sobre o gênero retórico judicial, pois nela, é vital a apresentação de evidências não técnicas, cuja testemunha é uma delas. Ele explica que existem duas categorias de testemunha: a antiga e a recente. A antiga fala do passado, e a recente discorre o fato presente em questão. Com isso, no Evangelho de Marcos, a retórica do testemunho é judicial, e a testemunha ocupa o espaço de evidência do testemunho relatado. O autor edifica sua ideia citando vários exemplos que demonstram o papel da testemunha e do testemunho no Evangelho marcano, como a cura do leproso em Mc 1:40-45.

Partindo da ideia de que o Evangelho de Marcos é um Livro de Testemunhas, Sanches e Bauckham corroboram em relação as muitas testemunhas que são mencionadas no Evangelho marcano. Sendo assim, as testemunhas são divididas em três: anônimas, anônimas ligadas a algum nome, e as que o nome não é citado. O diferencial está na investigação de Bauckham que se limita a Pedro, uma testemunha ocular por trás do Evangelho de Marcos. 

O relato de Sanches caracteriza o texto marcano como memorável e performável, observando as suas peculiaridades orais. O considera memorável porque cumpre a função reminiscente da memória dos fatos em uma cultura oral, transcrevendo e registrando o que era lembrado pelas pessoas sobre Jesus e seus feitos. E performável, pois é elaborado ao ponto de sobrelevar as excelências orais do texto escrito com o objetivo de cumprir as condições necessárias em um ambiente tão marcado pela oralidade.

O autor termina o artigo com intuito de destacar as categorias de testemunhas citando o trabalho de Malbon (1994), que caracteriza os personagens como principais (os Doze discípulos) e secundários, que são aqueles que aparecem na continuidade da narrativa sem uma presença costumeira e ininterrupta. Ele também sonda as tradições orais e escritas no Evangelho marcano, que se difundiram muitíssimo até serem transcritas para compor os textos evangélicos (THEISSEN, 2007). Por fim, Sanches reconstrói conceitos sobre a audiência implícita e real de testemunhas no Evangelho de Marcos, utilizando como base as obras de Prince (2003), Marguerat (2009) e Bourquin (2009). Ele explica que a audiência implícita está no texto, pois é construída por ele, interagindo de modo a posicionar-se a seu lado para melhor compreendê-lo. Enquanto, a audiência real é autônoma perante o texto, pois está fora dele; ela representa o público destinatário do texto e pode ser reconstituída, a partir dele, com certa credibilidade.

Com base no que foi apresentado, podemos refletir que o Evangelho de Marcos se baseia na oposição teórica entre conhecimento histórico e conhecimento testemunhal. Parece que a história e testemunho são modos diferentes de ver ou colher evidência sobre a realidade. Porém, os testemunhos do livro de testemunhas do Evangelho de Marcos efetuam a função de trivializar, generalizar e principalmente, tornar comum a pessoa que foi Jesus Cristo, sendo assim, quanto mais cristãos compartilharem a mesma informação e conhecimento sobre Jesus, mais popular ele se torna.

A obra do doutor Sanches é sublime do ponto de vista da narrativa do Evangelho de Marcos. Apesar de corroborar bastante com o entendimento de Bauckham, que limita sua narrativa unicamente ao exame da testemunha ocular, Sanches nos demonstra que o texto marcano expressa um ambiente bastante conflituoso. Nesse sentido, o testemunho seria extremamente pertinente, pois serve de evidência judicial e portador da verdade, no qual os passos de Jesus e dos seus seguidores ocupam o espaço de testemunha para a condenação dos adversários nessa atmosfera conflituosa.

Com isso, Sanches elege o Evangelho de Marcos como é um livro de testemunhas e minuciosamente passeia com o leitor desde os conceitos sobre a testemunha ocular até as muitas testemunhas, utilizadas por Marcos para construção do seu relato bíblico. Porém, as propostas sobre a continuidade dos estudos da oralidade e da transmissão das tradições orais e escritas por trás do Evangelho marcano, apresentadas pelo doutor Sanches, deveriam ser listadas com mais minuciosidade. Fazendo isso, o autor permitiria que outros escritores possam contribuir com suas teorias.


Referências


BAUCKHAM, R. Jesus e as testemunhas oculares: os Evangelhos como testemunhos de testemunhas oculares. São Paulo: Paulinas, 2011.

MALBON, E. S. The Major Importance of the Minor Characters in Mark. In: MCNIGHT, E. V.; MALBON, E. S. (Ed.) The New Literary Criticism and the New Testament. Valley Forge: Trinity Press, 1994. p. 59-86.

MARGUERAT, D.; BOURQUIN, Y. Para ler as Narrativas Bíblicas: iniciação à análise narrativa. São Leopoldo: Sinodal, 2009.

SANCHES, S. M. O evangelho de Marcos como livro de testemunhas: da testemunha ocular para as muitas testemunhas. Perspect. Teol., Belo Horizonte, v. 50, n. 2, p. 343-366, Mai./Ago. 2018.

THEISSEN, G. O Novo Testamento. Rio de Janeiro: Vozes, 2007.


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